Ontem a noite, fui apresentado para Aracy. Quero dizer, a o longa feito por Caco Ciocler, que reconstrói a história dessa mulher fantástica, esposa de Guimarães Rosa, a partir de depoimentos, pesquisa de cartas, lugares por onde ela passou, objetos pessoais deixados por ela e principalmente seu melhor feito.
Paranaense, de Rio Negro, filha de pai português e mãe alemã e ainda criança, foi morar com os pais em São Paulo. Em 1930, Aracy casou com o alemão Johann Eduard Ludwig Tess, com quem teve o filho Eduardo Carvalho Tess, mas cinco anos depois se separou, indo morar com uma irmã de sua mãe na Alemanha. Por falar quatro línguas (português, inglês, Língua francesa e alemão), conseguiu uma nomeação no consulado brasileiro em Hamburgo, onde passou a ser chefe da Secção de Passaportes.
No ano de 1938, entrou em vigor, no Brasil, a Circular Secreta 1.127, que restringia a entrada de judeus no país. Aracy ignorou a circular e continuou preparando vistos para judeus, permitindo sua entrada no Brasil. Como despachava com o cônsul geral, ela colocava os vistos entre a papelada para as assinaturas. Para obter a aprovação dos vistos, Aracy simplesmente deixava de pôr neles a letra J, que identificava quem era judeu.
Nessa época, João Guimarães Rosa era cônsul adjunto (ainda não eram casados). Ele soube do que ela fazia e apoiou sua atitude, com o que Aracy intensificou aquele trabalho, livrando muitos judeus da prisão e da morte.
Aracy permaneceu na Alemanha até 1942, quando o governo brasileiro rompeu relações diplomáticas com aquele país e passou a apoiar os Aliados da Segunda Guerra Mundial. Seu retorno ao Brasil, porém, não foi tranquilo. Ela e Guimarães Rosa ficaram quatro meses sob custódia do governo alemão, até serem trocados por diplomatas alemães. Aracy e Guimarães Rosa casaram-se, então, no México, por não haver ainda, no Brasil, o divórcio. O livro de Guimarães Rosa "Grande Sertão: Veredas", de 1956, foi dedicado a Aracy.
O documentarista Caco Ciocler, não pode estar presente numa das seções de estreia do filme, então pediu para seu diretor de produções ler esta carta:
“Quando era pequeno, ouvi uma história, a de que o Spielberg não conseguia enquadrar o tubarão. Então ele transformou a fragilidade em potência, filmando apenas a barbatana e deixando que os espectadores imaginassem o monstro. Nosso tubarão, a Aracy, ficou conhecida como a segunda mulher de um grande escritor. Não pudemos enquadrar o marido famoso por questões de direitos autorais. Nos restavam as histórias ouvidas e contadas. Esse filme tem mais a ver com barbatana do que com tubarão. Nosso monstro era frágil, mas tiramos a Aracy do status de mulher de escritor famoso. Me curvo diante dos mestres deste festival e peço licença para mostrar meu experimento”.
Cada ser humano possui uma historia de maior ou de menor importância na vida e esta história pode estar fixada numa das pontas que ordenam politicamente uma sociedade em sua época, fazendo com que algumas atitudes sejam vistas como certa ou errada, um descumprimento de ordem política ou um ato de heroísmo? O fato é que Araçy arriscou a própria vida para salvar pessoas de uma politica desumana, racista e antissemita. Ouviu seu próprio coração, como fez Schindler, Nicholas Winton e tantos outros possíveis anônimos dignos do nosso mais profundo respeito.