Isadora

Ontem a ventania já havia começado quando vi na rampa da garagem onde estacionamos a ambulância, uma sacola de super mercado flutuar mágicamente diante dos meus olhos como se tivesse vida própria. Dançava leve e solta a o comando do vento, esbanjando audácia e beleza sobrenatural. Era a própria Isadora Duncan reverenciando a vida e a liberdade. Mostrando que o belo pode estar na simetria dos movimentos livres, simples. Dançava exclusivamente pra mim. Eu que assisti uma cena semelhante no filme A beleza Americana, fui presenteado e achei ter ganhado o dia.

Acordei-me cedo em minha casa nova e então saí para caminhar pelas ruas, fazendo um reconhecimento do lugar. Bairro calmo, familiar, de classe media, com ruas arborizadas e varias praças a cada quadra que se inicia. Era 7h. 30min e moradores já estavam fazendo suas caminhadas matinais, alguns pedalando suas bicicletas, outros tomando chimarrão sob a sombra das arvores. Depois entrei numa lancheria para tomar um café. Conversei com o proprietário que me atendeu no balcão e disse que é morador há 38 anos, viúvo, três filhos, alegria estampada no rosto magro e de poucas rugas. Embora já tivesse bastante gente nas ruas, outros moradores iniciavam abrir suas janelas, a estender suas roupas nos varais suspensos dos edifícios. Carros de auto- escola treinando estacionamento com seus pupilos de expressão nervosa a bordo. Pássaros cantadores camuflados nas copas das arvores. Senti vida neste lugar que alguns anos a traz foi uma área deserta. Voltei para casa, com prazer de ter caminhado e encontrado muita vida naquela hora da manhã. Lamentei apenas estar sozinho, sem as pessoas que amo para compartilhar este momento.

Comecei a folhear alguns livros guardados no armário da minha casa a procura de frases soltas, então achei esta que fala em viver, escrito por Lia Luft no livro Pensar é transgredir: "Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos, para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos."

recado

Não visitei, nem me comuniquei com ninguém nesta semana passada. Provavelmente nos próximos dias me retratarei do desligamento necessário. Estive em período de socorro de mim mesmo, de auto- resgate que às vezes se faz imperativo, vital a sobrevivência.

Pequenos encontros...

Incrível como algumas separações propiciam encontros inesperados depois que tudo parece se esgotar. Encontros que antes não aconteciam por conta das diferenças individuais, dos descasos, das pendências acumuladas e urgências criadas pela vida. Perdemos a pessoa com quem convivíamos, mas encontramos outra na mesma pessoa que pode ser potencialmente um amigo, perdido sabe-se lá a quanto tempo e que de repente reapareceu das sombras, na esquina de uma frase dita. Talvez por que no percurso da relação semeamos algo como respeito, humanidade, delicadeza.
O fato é que sabemos que uma infinidade de coisas acabam, como amor, tesão, companheirismo, mas algo definitivamente fica marcado nestas relações. Algo que não sabemos exatamente o que é.

Bilhete pro Athos.

Tinha um olhar meio cinza que eu não sabia de onde vinha. A os poucos foi tendo brilho, mudando de cor. Começa agora a clarear sob a forçosa umidade dos olhos e ficar azul...

'Filho, tenho um olhar azul guardado para ti neste encontro que não aconteceu, mas está marcado eu sei.
Te devo isto, sem divisões, sem fragmentos, por inteiro e sem culpa.
Compromisso que marquei com afeto e sem medo de erros, sem desvio de olhares, sem palavras previamente elaboradas. Devo-te este encontro de amigo que tem saudades, que precisa de tua presença, do teu abraço, mesmo que não falemos nada, absolutamente nada...'

A cidade e seus corpos

Acho que a cidade tem mais de um corpo. O meu e o dela se vigiando atentamente. Um diante do reflexo do outro. Cria e criatura, instalando-se a desordem do ciclo natural, de quem nasceu primeiro, de quem é pai e de quem é filho. Quem construiu e quem foi transformado nas regras de suas leis e adaptações naturais. Acho que a cidade tem sua cara, seu jeito, seu cheiro, sua sensação de intimidade imprimida em ruas, becos, arvores centenárias. Acho que a cidade tem três corpos, o meu o dela e o seu. Todos de mãos dadas acolhidos sob um sentimento estranho de saudades.

A cara da cidade



Mas por falar em corpo e cara da cidade, lembrei-me de minha, nossa Porto Alegre, do cais do porto, da água escondida por traz daquele muro que fecha os olhos da cidade para o horizonte, para o mundo. Lembrei-me que alguns anos, ainda criança, eu passeava por ali com minha mãe para ver os navios atracarem entre compassos de silencio e buzinas barulhentas. Já li tantas citações e projetos no jornal para a abertura do porto que já perdi as contas. Acho que muitos esbarram em custos altos e interesses políticos, impossibilitando a obra. Li em algum lugar, que circula na prefeitura um projeto para redesenhar os 1.500 metros do Cais Mauá - que será aposentado como porto para virar espaço de lazer, cultura e convivência dos porto-alegrenses. Os armazéns A e B e do Pórtico Central serão recuperados. O novo cais do porto será chamado de Porto dos Casais. Poucos porto-alegrenses sabem que o pórtico do Cais do Porto foi produzido em Paris, no ano de 1919. Possui uma estrutura levíssima de ferro, emoldurada com vitreaux da época. Foi tombado pelo Patrimônio Histórico no ano de 1983. Era a porta de entrada da capital para os viajantes que chegavam a bordo dos das embarcações da época. Mesmo caminhando a passos lentos, a revitalização do porto da capital vem ganhando a atenção das autoridades do governo e das entidades ligadas ao turismo. A mercê de quase duas décadas de discussões intermináveis, tudo continua do mesmo jeito sem uma definição.

O corpo da cidade

Acho que a cidade tem corpo com braços que te esmagam, e às vezes te abraçam. Pulmões que te deixam respirar e te asfixiam em certas horas. Acho que a cidade tem sua própria voz, pelo som que transcorre no seu cotidiano louco. Penso que faço parte desta voz, deste grito desesperado, quando saio pelas ruas da cidade para fazer um socorro. Notei que ambulâncias e carros de policia têm suas particularidades: Fazem os transeuntes virarem a cabeça em suas direções. Preocupadas, assustadas com aquele ruído de alerta indesejado... De saia da frente, de temos pressa de chegar a algum lugar.

11/01/2008

A tempestade chegou cedo da manhã. Primeiro céu nublado então, em torno das seis horas, escuridão, ventania e tudo pareceu desabar em pouco menos de 10 minutos. Chuva forte com vento de deitar galhos de arvores, trovões, parecia que tudo ficaria inundado de uma hora para outra. Lembrei de alguns filmes que assisti e tinham cenas realizadas sob fortes tempestades como a de hoje. Depois fui me escovar, para enfrentar mais um dia de sorriso limpo. Observei minha cara atentamente no espelho e notei o aparecimento de novas rugas na cara, novos fios de cabelos brancos que pareciam não estar ali na semana passada. O tempo passa rápido depois dos quarenta, talvez depois dos trinta... Então fiquei ali, me examinando, me admirando, pensando nestas transformações que não estamos atentos e de repente nos tomam de surpresa. Mostrando que o tempo é apenas um artifício da vida e nós uns idiotas preocupados com o inevitavel.

A Vingança da Coruja.

Achei o texto "A vingança da Coruja."escrito pelo advogado Isaac Menda no Diario Gaucho de 09/01/2008, da maior criatividade e sensibilidade que não pude deixar de postar em meu blog.
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Nei e familia foram passar o fim de ano em Capão da Canoa. Na noite de réveillon, jantaram cedo e se dirigiram para a beira do mar, onde assistiriam ao espetáculo da queima de fogos. Estavam animados e felizes. Nei levava duas garrafas de espumante para os brindes da passagem de ano.
Antes da meia- noite, os comentarios entre o publico eram sobre a invasão de mães-d'agua no litoral gaucho, principalmente em Capão da Canoa. Varias pessoas relataram quemaduras e uma delas narrou o episódio acontecido naquela tarde, quando seu filho de 12 anos foi atacado por uma mãe- d'agua, e mostrou o braço do menino, que ainda tinha sinais de queimadura. Falaram de outros assuntos, como o tempo, a cor do mar, os pasteis, as casquihas de siri, o excesso de pessoas na praia. Olhavam para o relogio na expectativa da meia- noite. Derepente, foi anunciado que não haveria queima de fogos em consequência da existência de um ninho de corujas com filhotes perto do local dos artefatos. Frustrados, voltaram para casa. Nei a todo o momento, bradava que era um absurdo o cancelamento dos fogos por causa de uns bichinhos.
-E daí que fiquem assusados. O problema é das corujas. Quem mandou construir ninho na praia? -falava para a mulher.
No dia seguinte, sentado a beira- mar, Nei ainda curtia uma tristeza pela noite sem fogos. Depois de quatro cervejas, sentiu necessidade de fazer xixi. Olhou para trás e viu um banheiro ecológico. Levantou-se e...resolveu ir para o mar, pois estava mais perto.
-Grande coisa fazer xixi na água. Ninguem vai me ver- dizia para si.
Entrou no mar até que a agua encobriu sua cintura. Baixou o calção e começou a aliviar a bexiga. Logo deu um grito. Alguma coisa queimava seu membro. Saiu correndo em direção ao guarda-sol sem notar que estava nu. E carregando uma mãe-d'agua presa na genitalia. Começou uma gritaria geral quando Nei apareceu pelado na frente dos veranistas. Para os salva-vidas ele implorou:
-Tire essa coisa daí, está me queimando!
O salva-vidas olhou e com um palitinho de picolé, arrancou a mãe-d'agua, comentando:
-Bah, ficou com um aspecto de coruja.

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Quando as nossas emoções, alegrias e tristezas passam do tempo, nossos sentimentos humanos ficam acomodados numa cesta do tempo recebendo so...