"Atravesso o presente de olhos vendados, mal podendo pressentir aquilo que estou vivendo... Só mais tarde, quando a venda é retirada, percebo o que foi vivido e compreendo o sentido do que se passou...
Me chamou a atenção esta bonita e verdadera frase do Livro Risíveis Amores de Milan Kundeira que li a bastante tempo!

Boa noite John Boy

O dia de hoje combina com pipocas carameladas, bolinhos fritos com canela e açúcar, chocolate quente na caneca, edredon até o pescoço e uma boa companhia para dar beijos na boca e assistir filmes como: Jeannie é um gênio, Os três patetas, Os Waltons. Epâ!... este ultimo é mais serio, mas também muito bom para se matar a saudades do "Boa noite John Boy! Boa noite Mary Ellen!" numa viagem pelo tempo ao distante fim de tarde nos anos setenta. Mas eu acreditava que a vida pudesse ser assim, que a América fosse assim, como no seriado americano "Os Waltons", uma espécie de paraíso em família, onde o amor, a bondade e a compreensão pudessem superar todas as dificuldades, conflitos e divergências do mundo. Onde todos pudessem realizar seus sonhos e que os sonhos fosse como os John Boy, tão real como no seriado. Eu acreditava mesmo!

Lambendo feridas

Mais uma noite de chuva encharcando a cidade, adiando as possibilidades de encontros a o ar livre nos bares da cidade. Nas noites chuvosas, tudo me parece mais difícil, até mesmo a vontade das pessoas saírem de casa para se divertirem, talvés prefiram suas próprias companhias em tempos como este. Há quantos dias vem chovendo sem parar, devastando cidades, destruindo famílias? Perdi-me nas contas, nos dias nublados e de pouca claridade. Os dias cinzas nos fecham em instrospecções profundas, desvia o olhar para nosso interior, divagações, questões não pontuadas que precisam de acertos. Como dizia um amigo: Dias como estes nos faz lamber feridas!

Tapete de flores

Enquanto voltava para casa ontem de madrugada, chamava-me a atenção o tapete colorido nas ruas e calçadas de PoA feito de flores de Ipê. Mergulhei naquela imagem magnifica e fiquei pensando nas pessoas que encontrara minutos atrás e sobre o que falavamos. Beto, Clymeia, Jerson, Beatriz e tantas outras presentes. O que buscávamos naquele encontro alem de parabenizar um amigo, de perpetuar nossas vidas através de lembranças saborosas, trocas de experiências, erros? Algo mais existia além do simples encontro, do momento saudoso, da musica do U2 que tocava no telão, dos olhares divididos, dos sorrisos, dos silêncios que eram quase confissões de algo que precisávamos perpetuar a todo o custo enquanto estávamos ali vivos. Somos cúmplices de dias tão desiguais a cada um de nós, mas com resultado único a todos. Tantas coisas nos diferencia mas outras nos iguala, nos deixando sem cor, sem idade, sem sexo, sem diferenças.


Buscando vida na morte

O que ele quer fazer conosco, perguntei-me num lampejo de ideias antes de exteriora-las e me abaixar para verificar se ele realmente estava morto, se tinha alcançado o seu objetivo de não ter mais volta, mas ainda respirava com certa dificuldade e assim concluí que estava vivo.
O homem
estava caído no chão, inconsciente, sob o olhar de revolta da esposa e expressão de desespero da filha. Bebeu uma garrafa de cachaça com uma cartela de comprimidos de Ritalina.
_Ritalina mata?_Alguem perguntou.
_Isto é resultado da tristeza do domingo! _Disse o irmão, olhando para o corpo estendido.
_A minha tristeza continuará na Segunda, na Terça, Quarta, enquanto eu suportar tudo isto!_Concluiu a esposa.
_Quem realmente quer morrer dá um tiro na própria cabeça!_Retrucou um vizinho curioso que passava por perto.
Os dados da literatura comprovam que o suicídio é a segunda causa de morte na adolescência, superada somente por acidentes e homicídios. Deve-se considerar que muitos dos acidentes e homicídios são também suicídios encobertos ( Genovese Filho-1986.) Numa tentativa de suicídio ocorre uma combinação de duas tendências opostas, uma de auto destruição e o desejo de que os outros manifestem preocupação com eles, de modo que eles não querem nem morrer nem viver, mas ambas as coisas, em proporções variáveis ( Stenguel, 1970). Muitos dos que tentam suicidio expressam na verdade, o desejo de melhorar sua situação de vida. Varios aspectos nos dão conta da intencionalidade do ato suicida como: o conhecimento prévio dos efeitos do ato, o estar sozinho ou acompanhado, o pedir ajuda após o ato, o acidentar-se frequentemente, ocupações que tenham um risco maior de acidentes, o método utilizado, perdas afetivas, o sexo, a idade, religião e grau de instrução, aspectos observados em vários trabalhos estudados. Qualquer gesto suicida é um pedido de ajuda, e assim deve ser encarado. É preferível, nestes casos, errar por excesso do que por omissão, pois a morte não tem terapêutica. Geralmente, os suicidas fantasiam a reação dos vivos perante à sua morte: o sentimento de tristeza, remorso e culpa. O suicida elimina sua vida, paga com ela, mas não está totalmente consciente disso, o prazer de tornar real sua fantasia de vingança, de causar sofrimento aos outros... Muitas vezes, ele nem deseja a morte, mas sim uma nova vida, em que a pessoa se sinta querida, seja importante. O final fantasiado, se possível, é que aquelas pessoas de quem se imagina que veio o maltrato, se sintam culpadas e com remorso. Então, o suicida, como que ressuscitaria, todos se desculpariam e a vida continuaria num final feliz. Existe uma independência entre o desejo de morrer e o de matar-se. A pessoa que se mata não quer necessariamente morrer, pois nem sabe o que isso significa. Ela se mata porque deseja uma outra forma de vida, fantasiada. Nessa outra vida ela encontra amor, proteção, se vinga dos inimigos, reencontra pessoas queridas. Uma anedota nos mostra uma pessoa que jogou-se num rio querendo matar-se. Enquanto se debate na água, recusa cordas e bóias que as pessoas lhe jogam da margem. Finalmente, um policial a ameaça com um revolver: “ou você sai daí ou te dou um tiro”. O suicida em potencial, que quer matar-se, não quer ser morto, e sai da água.. A anedota é verdadeira, e nos leva a um outro aspecto do suicida. O individuo quer morrer, mas também quer viver, ele está em conflito, e comumente uma ajuda ou até uma ameaça (como no caso) podem decidir a direção que vai ser tomadaO suicida sofre e faz sofrer. Ele não sabe o que é morte. O que o suicida procura é escapar de um sofrimento insuportável, real ou fantasiado, interno ou externo. É o ato suicida é uma mensagem, uma maneira de comunicar suas dores e pedir ajuda.

Uma cena que me emocionou ontem

Embora minha preferência no comando das telenovelas da Rede Globo sejam Manoel Carlos e a inesquecível Janet Clair, falecida, não pude deixar de me emocionar ontem com a cena em que Maia (personagem interpretada por Juliana Paes) vai ao encontro marcado com Bahuan (Márcio Garcia) e pede para que ele cuide de seu filho, (o filho que é fruto de seu amor com o próprio bahuan no passado e que se tornou seu grande segredo em toda a novela) e também seu sentimento de culpa por ter enganando 0 marido fazendo-o acreditar ser o verdadeiro pai de seu filho, e pelo qual também se apaixonou no decorrer da novela e que agora acredita estar morto. A verdade e que todo o sofrimento de Maia pareceu ter vindo de um mal entendido inicial e mentiras sucessivas que foram se enraizando em sua vida de maneira a escraviza-la na própria mentira, fazendo-a viver sobre a íngreme corda bamba do medo de ser desmascarada. Mas não quero prolongar-me nisto, quero sim é falar do quanto a cena de ontem me emocionou, vendo uma mulher fragmentada, arrasada, por parecer ter perdido tudo que mais amou na vida e agora abrindo mão também da convivência com seu filho, dando a entender que o proximo passo será dar fim na propria vida. Parecia que em seu olhar tudo havia se extinguido, inclusive sua alma se esvaziado durante o pedido que fez à Bahuan parado numa posição superior, no topo de uma escadaria. As vestias toda branca e o rosto que parecia com pouca maquiagem, davam-lhe um certo ar de abandono e tristeza.
A voz rouca e cansada de Nana Cayme enalteceu ainda mais aquele clima de desilusão e sofrimento encarnado pelo personagem, que passou-me a sensação de que seu próximo passo na novela não seria outro a não ser a propria morte.


"Onde voce estiver não se esqueça de mim.
Com quem você estiver não se esqueça de mim
Eu quero apenas estar no seu pensamento
Por um momento pensar que você pensa em mim
Onde você estiver, não se esqueça de mim
Mesmo que exista outro amor que te faça feliz
Se resta, em sua lembrança, um pouco do muito que eu te quis
Onde você estiver, não se esqueça de mim..."

*Erasmo Carlos.

ORGULHO E PRECONCEITO


Sábado à noite foi a vez de assistir "Orgulho e Preconceito" do diretor Joe Wright, cujo o DVD comprei á tarde nas lojas Americanas e não floresceu as rosas da minha sensibilidade. Quero dizer que não mexeu comigo como eu esperava que acontecesse. Eu acredito que estava num outro clima e talves devesse deixar para assistir o filme numa outra ocasião. Eu confesso que esperava os mesmos sentimentos que ocorreram em mim quando assisti "Desejo e Reparação" do mesmo diretor que é outra história e com final surpreendentemente inesperado. Eu também estava em outro momento.


Sinopse do filme:
Inglaterra, 1797. As cinco irmãs Bennet foram criadas por uma mãe que tinha fixação em encontrar maridos que garantissem seu futuro. Porem Elzabeth deseja ter uma vida mais ampla do que apenas se dedicar ao marido. Quando o sr. Bingley, um solteiro rico, passa a morar em uma mansão vizinha, as irmãs ficam agitadas. Jane logo parece que irá conquistar o coração do novo vizinho, mas quando a jovem Elizabeth encontra o charmoso Sr. Darcy, ela acredita que ele seja o ultimo homem na terra com quem ela poderia se casar um dia. Mas quando suas vidas se tornam entrelaçadas em uma inesperada aventura, ela descobre estar cativada pela pessoa que jurou desprezar por toda a eternidade.


Titulo Original:Pride & Prejudice, 2005 .
» Direção: Joe Writgth
» Roteiro: Deborah Moggach- roteiro Jane Austen- romance.
» Gênero: Drama/ romance
» Origem: Estados Unidos/França/Reino Unido
» Duração: 127 minutos
» Tipo: Longa-metragem

O silêncio das estrelas

Algumas histórias contadas, frases ditas, letras de canções, poemas, que leio ou ouço, batem dentro de mim e revelam-me sentimentos pessoais que de inicio não reconheço mas que de uma hora para outra se revelam através de sinais emocionais tão familiares, que cabem exatamente dentro de mim, como se fosse feito pra mim, escrito pra mim. Dia 03/09 quando assisti Leline no salão de atos da Ufrgs cantar "O silêncio das Estrelas", experimentei a sensação de que parte de mim estava sendo revelada publicamente naquela canção diante de toda a plateia atenta, que um sentimento meu fora violado através de uma bela canção e que com certeza não era só meu, mas também do proprio Leline que a compôs e muitas pessoas ali presentes, oque me deixou mais confortavel. Estavam todos expostos naquele momento, sem mais segredos!


Solidão, o silêncio das estrelas, a ilusão
Eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos
Como um deus e amanheço mortal

E assim, repetindo os mesmos erros, dói em mim
Ver que toda essa procura não tem fim
E o que é que eu procuro afinal?

Um sinal, uma porta pro infinito, o irreal
O que não pode ser dito, afinal
Ser um homem em busca de mais, de mais...
Afinal, como estrelas que brilham em paz, em paz...

Solidão, o silêncio das estrelas, a ilusão
Eu pensei que tinha o mundo em minhas mãos
Como um deus e amanheço mortal

Um sinal, uma porta pro infinito, o irreal
O que não pode ser dito, afinal
Ser um homem em busca de mais...
Por que faço eu sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,
A minha vida segue uma rota e uma escala
Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito
Daquilo que faço e sou: não me iguala

Não me compreendo nem no que, compreeendendo, faço.
Não atinjo o fim ao que faço pensando num fim.
É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.
Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.

Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?
Além da minha alma, que outra alma há na minha?
Por que me destes o sentimento de um rumo,
Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha

Senão com um uso não meu dos meus passos, senão
Com um destino escondido de mim nos meus atos?
Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?
Que sou entre quê e os fatos?

Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!
Ó ilusões! Se eu nada sei de mim e da vida,
Ao menos eu goze esse nada, sem fé, mas com calma,
Ao menos durma viver, como uma praia esquecida..."

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Gaita de boca

Existe uma gaita de boca que toca aqui por perto e me chama atenção. Impede-me que eu durma antes das quatro da manhã. Este blue vindo da gaita parece um choro, um lamento que atravessa as paredes na madrugada chuvosa. Não é sempre que toca, é somente quando quer, tem vontade própria, chora quando quer despertar algo na alma, nas noites de chuva como a de hoje.
Semana passada, alguém de Casimiro de Abreu, visitou meu blog fazendo eu reviver com saudades a visita que fiz a esta cidade em Fevereiro, quando fui ao Rio. Casimiro de Abreu, é uma pequena e pacata cidade encrostada entre a serra e o mar. Possui uma beleza interiorana peculiar. Um lugar difícil de se esquecer!

Domingo no Brique

Dar um passeada hoje pelo Brique, foi tão necessário quanto experimentar um bolinho de bacalhau ou um acarajé com suco natural na banca de comidas baianas da Célia. Dia quente, sol, pessoas com roupas leves, cuia de chimarão e garrafa térmica penduradas no ombro, suco natural, gente diferente e colorida, poesia de rua, estátua humana, musica clássica acompanhada por violoncelo, show de crianças indígenas, exposição de artesanato, artes plásticas, antiguidades, pessoas caminhando pelo parque, outras deitadas sob a sombra das árvores, crianças banhando-se nos chafarizes, terceira passeata Lésbicas de PoA, tirar fotografia com o ultimo lambe-lambe. O Brique vai além de uma simples feira, comparado mundialmente ao Mercado das Pulgas de Paris e a Feira de San Telmo em Buenos Aires. É palco de espetáculos artísticos, tribunas politicas e sociais, encontro de amigos, e um recanto onde os Portoalegrenses podem se aproximarem ainda mais da alma de sua cidade e se distraírem.

Sobre a Vitória Régia

Acordei deitado sobre uma Vitória Regia, incrivelmente sem afundar. O rio era límpido e transparente e refletia o Sol na sua superfície como um grande espelho dourado. Uma brisa soprava de leve e me conduzia para algum lugar rio abaixo. Será que é assim o paraiso, pensei logo que acordei sobre a minha cama!...

Situações banais

Hoje a noite vesti-me de bermuda, camiseta sem manga, chinelos Havaianas e dei uma longa caminhada pelas calçadas do bairro. Pulei uma grande pedra branca que avistei na calçada e que nunca a tinha notado, conversei com o vigilante bigodudo da rua, com Cleide a dona do bar, comprei uma garrafa pequena de cerveja escura que bebi ainda na rua com prazer e uma lâmpada de 100 watts. Dei duas voltas na praça iluminada onde acontecia uma partida de futebol, senti cheiro de mato, notei que a lua estava pela metade, ouvi Marisa Monte num carro estacionado com um casal se beijando. Desviei do feitiço com a vela acesa na esquina, ouvi uma piada nova do sindico que saia e as queixas da moradora de cima que não conseguia fazer seu carro ligar. Avistei um cavalo solto e assustado correndo pelas ruas, Quero-queros barulhentos defendendo seu espaço... Percebi que se pode fazer tantas "histórias" com estas situações banais, como viver mais um dia dentro delas e comprender a sua importancia!..


Pendengas da cidadania

Então foi decidido dia 23 de Agosto a pendenga do SIM ou NÃO, pelo projeto de transformação do Pontal do Estaleiro Só na beira do Guaiba, em prédios altos de moradia chic (economicamente diferenciado) e comerciais. A construção de um complexo de prédios na área do antigo Estaleiro levantou os moradores de Porto Alegre numa poeira de discussões no que se refere aos impactos positivos e negativos no local. Segundo o projeto seriam construídos seis gigantescos prédios na orla do Guaiba. Os jornais e meios de comunicação fomentaram a opinião publica durante semanas para saberem junto aos cidadões, se deviam ou não ser construídos os prédios residenciais. Atualmente a área é um amontoado de construções em ruínas, matagal e lixo, transformado-se dia a dia em um mega lixão, ponto de marginais e violência. Me senti inseguro de escolher por um SIM na ocasião e com isto dar aval a uma pequena fatia da sociedade que teria acesso visual a um dos locais mais belos da cidade quando se aproximassem de suas janelas. Me senti um favorecedor da minoria se na ocasião optasse por um SIM. Por outro lado pensei que medida o governo tomaria com relação aquela área, caso vencesse o NÃO e o projeto de construção ficasse apenas no papel, continuaria o lixão de sempre?.. Existe algum projeto do governo para aproveitamento publico daquela área, será que entrará no complexo jogo das impossibilidade orçamentarias? Venceu o NÃO e agora só nos resta esperar como temos esperado pelo projeto de Revitalização do Cais do Porto, o projeto de reforma da Ponte do Guaiba e tantos outros que nem lembro mais por caírem em esquecimento.

Em que momento perdemos a inocência?

_De que são feita as estrelas?
Perguntou a senhora para a menina de cinco anos que eu atendi ontem.
_De pedacinhos de espelho!
_E as nuvens?
_De algodão!
_E o planeta Terra?
_De gente feliz!
_E a noite?
_É quando eu fecho os olhos para dormir!
E a senhora continuava a perguntar insistentemente para a menina que era uma candura e respondia a tudo espontâneamente e com a certeza de seus conceitos inocentes, imaginativos e olhar sonhador.
Fiquei pensando de que mundo vinha aquela doce criaturinha e em que momento mudamos nossos conceitos pessoais pelos conceitos do mundo e das regras impostas. Em que momento somos obrigados a crescer e perdermos a inocência para sobreviver nesta guerra e virarmos adultos, em que momento?

Beirando desconforto

Por mais que eu corresse e empurrasse o pé contra o acelerador e fixasse meus olhos para ver os traços luminosos no asfalto escuro da avenida Ipiranga, eu sentia que precisava ir com mais presa ainda, com mais vontade, com mais urgência de chegar em casa e me atirar sobre a cama e ficar em minha companhia, quieto. As vezes fico assim, somente eu me suporto, somente eu posso encontrar minha posição de conforto, somente eu posso escapar de mim e me encontrar de novo. Desconfortos algumas vezes nos fazem retomar novas posições emocionais diante de nós mesmos, abre possibilidades a futuros recomeços intrínsecos. Uma pausa, ponto, nova linha, travessão, reiniciar e traçar novos caminhos...

Caixa de Pandora

Como não tens mais escrito, tenho a sensação de que perdi algo em ti que não sei o que é, que não tenho quando estou do teu lado, te olhando no olho, bebendo vinho, sentindo tua respiração lenta e profunda. Acho que algo que impactava com minhas ideias e me deixava pensando e que não se revela nos encontros pessoais. Clico na porta que se abre e nada de novo alem do azul e da musica que se repete. O que tens feito de tuas inspirações, o que tens pensado solitariamente que não revelas mais, o que tens guardado em tua caixa de Pandora?


Dia de Verão

Acordei com o sol invadindo o quarto e alguns raios batendo no meu rosto. Dia bonito e com ruídos identificáveis que me dão a sensação de há vida lá fora além da minha aqui neste quadrado organizado. Parece aqueles dias que antecedem viagens-> decisões-> mudanças-> e que a vida te dá algumas pistas discretas a serem percebidas nas coisas mais óbvias. Um canto diferente de pássaro na árvore, choro de criança na calçada, alguém apertando a campanhia do apartamento vizinho. Tudo tão absolutamente normal, mas diferente de outros dias em que o silencio é maior e tão espaçoso quanto o mar, incomodo como uma cela apertada, em que percebo minha própria respiração se fazer audível nas imensas ondas de silencio que algumas vezes me faz bem, noutras mal e tem dominado os dias frios e chuvosos daqui. Talvés a diferença esteja em mim e não neste dia que parece um Verão um tanto esquecido.

Além do ponto

Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse um táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos. Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pêlos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d'água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer que ele soubesse que eu era eu, encharcado naquela chuva toda que caía, caía, caía e tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum, ou parar para sempre ali mesmo naquela esquina cinzenta que eu tentava atravessar sem conseguir, os carros me jogando água e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia mas não devia, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, que me abriria a porta, o sax gemido ao fundo e quem sabe uma lareira, pinhões, vinho quente com cravo e canela, essas coisas do inverno, e mais ainda, eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar parado, pois tem um ponto, eu descobria, em que você perde o comando das próprias pernas, não é bem assim, descoberta tortuosa que o frio e a chuva não me deixavam mastigar direito, eu apenas começava a saber que tem um ponto, e eu dividido querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável dele me esperando quente e pronto. Um carro passou mais perto e me molhou inteiro, sairia um rio das minhas roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhado, sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão perto que uma quentura me subia para o rosto, como se tivesse bebido o conhaque todo, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pele fria, começava a escurecer, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama larga com muitos cobertores, e foi então que escorreguei e caí e tudo tão de repente, para proteger a garrafa apertei-a mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e além da água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava encharcada de conhaque, como um bêbado, fedendo, não beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, escondendo o caco do dente, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele chamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta. Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorri mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca
Caio Fernado Abreu Do Livro: Morangos Mofados

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